Uma das habituais confusões que muitos historiadores fazem sobre o Exército Português durante as Guerras peninsulares é compararem as Milícias e Ordenanças portuguesas a guerrilheiros (“the crucial part they played – Milícias e Ordenanças – in the all-important draft system was largely ignored, possibly because there was nothing quite like it elsewhere”) porque eram forças praticamente desconhecidas na Europa. Outra incompreensão comum tem resultado de não se entender que o conceito de “nação em armas” é muito antigo em Portugal e bastante anterior à revolução francesa. Recuemos, pois, até à Idade Média onde nasceu “o espírito” do Exército Português.
Interessa-nos, para melhor entendermos o Exército durante as Guerras Peninsulares destacar três importantes e antigas leis do Reino:
• Criação das Milícias – D. Sancho I (1185-1211), fomentou a criação de autênticos “viveiros de gentes” e D. Sancho II (1223-1248) passou a estabelecer nas suas cartas forais a obrigação de serem constituídas Milícias municipais;
• As “Nação em Armas” – na Regência de D. Pedro (1444) foram promulgadas as Ordenações Afonsinas, incluindo as ordens reais que regulamentavam a organização territorial da milícia municipal, o acontiamento dos nobres e a organização dos besteiros do conto.
• Criação das Ordenanças – Com D. Diniz (1277‑1325) foram criados pequenos corpos militares de besteiros com os seus comandos permanentes que passam a integrar na hoste real também os “homens de ofício” ou mesteirais, que não faziam parte da milícia concelhia. Surge aí pela primeira vez o termo ordenança (à ordem do Rei), a “massa militar da Nação” no dizer de Carlos Selvagem17. Mas foi em 1570 que o chamado Regimento das Companhias de Ordenanças (Ordenações Sebásticas) concretizou um tipo de serviço militar obrigatório que se vai manter até ao período que estamos a estudar (das Invasões francesas). O reino era dividido em vastos distritos de recrutamento (comarcas ou capitanias‑mores) onde cada capitão-mor procedia ao alistamento (arrolamento) de todos os homens válidos dos 18 aos 60 anos para formar as companhias de ordenança ou bandeiras. Mais tarde foram criados terços de Ordenanças com 3 000 homens cada. Foi a partir daqui e até meados do século XIX que a partir das Ordenanças se recrutavam os homens para formar as unidades de primeira linha, sempre que fosse necessário.
Depois da Restauração, em 1640, o Exército consolidou-se como corpo permanente. Também nesta fase difícil da nossa história tivemos de recomeçar do nada, sem Exército e sem Marinha. Perdida grande parte do nosso império ultramarino foram necessárias medidas de excepção para recuperar o velho espírito de nação em armas e ampliá-lo. Das várias medidas de D. João IV salientamos as seguintes:
• Criação de um Conselho de Guerra com um conjunto de Oficiais Generais e Almirantes que geriam as forças terrestres e navais;
• Nomeação do governador das armas das províncias (divididas em comarcas), com vista a assegurar o recrutamento, instrução e disciplina das tropas;
• Organização do Exército em três escalões de forças:
o Ordenanças – destinadas a guarnecer as praças-fortes, em companhias de 240 homens cada, a servir como tropa irregular nas operações de pequena guerra, local e circunscrita, e a funcionar como depósito de recrutamento;
o Auxiliares ou Milícias – destinadas a acudir às fronteiras em situações de guerra, organizadas em terços com cerca de 600 homens;
o Exército de Linha ou Exército Regular – Exército permanente destinado à guerra de manobra, a Infantaria organizada em Terços de 2 000 homens e a Cavalaria em companhias de 100 homens num total de 20 000 infantes e 4 000 cavaleiros.
• O serviço militar obrigatório abrangia todos os homens válidos entre os 15 aos 60 anos sendo para o Exército de linha os oficiais nomeados pelo Rei; e os soldados provinham das listas de Ordenanças entre os filhos segundos de todas as classes; os restantes ficavam distribuídos pelas Milícias e os de maior idade nas companhias de Ordenanças.
Nas décadas seguintes o Exército português acompanhou a evolução dos restantes Exércitos europeus. Durante a Guerra da sucessão de Espanha, em 1707, D. João V publica novas Ordenanças e passam a existir Regimentos no Exército de primeira linha.
Demasiado tempo de paz levou a que o Exército fosse negligenciado e em 1762 foi chamado a Portugal um General prussiano muito respeitado, o Conde de Lippe, a quem foi atribuído o cargo de Marechal-General do Exército Português e que, comandando um Exército Luso-Britânico teve grande sucesso durante a Guerra dos Sete Anos. Quando deixou Portugal tinha organizado “one of the best armies in Europe”.
A organização dos Regimentos tinha sido refinada, modernizaram-se os regulamentos, melhorou-se o sistema de instrução e treino e o armamento evoluiu. O sistema de recrutamento, mais assente num sistema regional, permitia a existência de 21 Regimentos de Infantaria, 12 de Cavalaria e 4 de Artilharia. O alistamento dos oficiais passou a fazer-se através do Real Colégio dos Nobres, perdendo grande parte da arbitrariedade que caracterizava o processo anterior e foi feito o restauro de diversas fortalezas, bem como a construção do Forte da Graça em Elvas, completando o sistema defensivo das fronteiras. Note-se que não só o Conde de Lippe não mudou o sistema de Milícias e Ordenanças como, admirado pela eficácia do mesmo, o recomendou para ser implementado no seu país.
Mas a Revolução Francesa apanhou de novo um Exército negligenciado, comandado por um velho general, o Duque de Lafões e um sistema de recrutamento manchado pelas inúmeras injustiças nas levas de recrutas.
O carácter expedicionário das forças armadas portuguesas foram então de novo testadas e um Exército de cerca de 5 000 homens partiu para o Rossilhão, nos Pirinéus, em auxílio de Espanha na guerra contra a França e uma expedição naval partiu para combater com a armada de Nelson.
Em 1801, devido aos insucessos na defesa de Portugal contra a ofensiva hispano-francesa da Guerra das Laranjas, Portugal procurou novos generais estrangeiros para reorganizar o seu Exército, mas nenhum conseguiu o que Lippe tinha conseguido e alguns dos grandes generais portugueses de então foram injustamente pouco escutados, como o Marquês de Alorna ou Gomes Freire de Andrade.
Finalmente, a 19 de Maio de 1806, uma nova lei propunha grandes alterações na organização e sistema de recrutamento, especialmente com o novo regulamento de Ordenanças. Esta lei representava “um progresso notável nas nossas instituições militares”, o país ficaria dividido em 3 grandes Divisões militares: norte, centro e Sul, abrangendo 7 governos e 3 distritos militares. As 3 Divisões tinham Brigadas de Ordenanças, cada uma com 8 capitanias-mores e por sua vez estas divididas em 8 companhias de Ordenanças. No total, além destas Brigadas de Ordenanças, o Exército de primeira linha mantinha os 24 Regimentos de infantaria, 12 de Cavalaria e 4 de Artilharia e os Regimentos de Milícias passavam para 48.
Ao recenseamento obrigatório entre os 17 aos 40 anos de idade, seguia‑se a inspecção e a classe anual passava a ser dividida, por sorteio em duas partes, para o Exército Activo e para as Milícias e Ordenanças.
O serviço compreendia 10 anos no activo e 8 nas Ordenanças ou 14 nas Milícias e 8 nas Ordenanças.